Médica de alma, barrada por 17 segundos: vídeo tira vaga de aluna cotista em universidade federal
A estudante baiana Samille Ornelas, de 31 anos, foi desligada do curso de Medicina da Universidade Federal Fluminense (UFF) após ser considerada inapta a ocupar uma vaga reservada para candidatos autodeclarados pardos. A decisão se baseou exclusivamente em um vídeo de 17 segundos enviado para o comitê de heteroidentificação da instituição, como parte do processo de matrícula pelo Sistema de Seleção Unificada (Sisu), em 2024. Apesar de já ter ingressado anteriormente em uma graduação como cotista e apresentar documentos e imagens que reforçam sua identidade racial, a universidade alegou ausência de “características fenotípicas” compatíveis com a política de cotas.
Pontos Principais:
- Samille Ornelas foi desligada da UFF após comissão não reconhecê-la como parda.
- Mesmo com histórico de cotista no Prouni, teve matrícula negada duas vezes pela universidade.
- Iniciou o curso por decisão liminar, que depois foi cassada sem aviso prévio.
- Avaliação foi feita por vídeo de 17 segundos, sem contato presencial com a candidata.
- Estudante realizou laudo antropológico comprovando traços de origem negra, mas Justiça manteve decisão.
- UFF defende que seguiu a legislação e que as comissões foram treinadas para análise fenotípica.
- Samille agora volta a estudar para o Enem, enquanto o processo segue em instâncias superiores.
Após ter o pedido de matrícula negado duas vezes pela UFF, Samille acionou a Justiça e obteve, por meio de liminar, o direito de iniciar os estudos no 1º semestre de 2025. Com pouco tempo para reagir, ela pediu demissão do trabalho em Belo Horizonte, enterrou o pai e, três dias depois, chegou ao campus da universidade em Niterói, no Rio de Janeiro. Frequentou aulas, realizou provas, integrou-se à comunidade acadêmica e completou quase todo o primeiro período do curso – até que a liminar foi cassada por um desembargador e todos os seus dados foram excluídos do sistema da UFF.
A decisão final surpreendeu até seus colegas, pois o aviso de “matrícula cancelada por liminar cassada” apareceu no sistema sem aviso prévio. Samille conta que ficou sabendo do desligamento ao tentar acessar o refeitório: o QR code foi rejeitado. Ao entrar no portal da universidade, percebeu que sua matrícula, notas e grade horária haviam sido apagadas. “Meu mundo caiu”, afirmou. “Minha vida toda está assim, bagunçada, destruída, baseada em um vídeo de 17 segundos. Ninguém me viu para dizer se sou parda: nem a banca, nem a Justiça.”
A UFF afirma seguir rigorosamente a legislação vigente e garantir a transparência dos processos de seleção. Segundo nota da instituição, Samille foi considerada inapta por duas comissões independentes formadas por membros capacitados, treinados em letramento racial. A universidade sustenta que o processo de heteroidentificação é parte de um esforço para combater fraudes e garantir que a política de cotas beneficie os destinatários legítimos.
A avaliação fenotípica, baseada na aparência física, é o único critério aceito pelas comissões de heteroidentificação. Não se considera a ancestralidade ou documentos que comprovem a origem racial, mas apenas como a pessoa é percebida socialmente. A prática é amparada por decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e por normas do Ministério da Gestão, que validam esse tipo de análise, inclusive em concursos públicos. No caso da UFF, o edital previa o envio de vídeo com rosto e perfil do candidato, gravado em fundo branco.
Mesmo assim, Samille reuniu imagens de várias fases da vida, comprovou ingresso anterior no ensino superior pela mesma modalidade de cotas (no curso de Biomedicina, via Prouni), e procurou a Justiça com novo recurso. A pedido de sua defesa, realizou ainda uma avaliação antropológica independente. O laudo concluiu que ela apresenta traços físicos associados à população negra, como nariz largo e formato craniano característico. Ainda assim, a decisão judicial foi desfavorável.
O impacto emocional da exclusão foi profundo. Samille relata ter desenvolvido vergonha de sair na rua e dificuldades para se reconhecer no espelho. “Sempre tive a certeza da minha cor. Hoje me sinto desacreditada, como se fosse uma impostora. Cresci me reconhecendo como parda, sofri racismo, fui alvo de olhares atravessados no trabalho – e agora, simplesmente, dizem que eu não sou”, lamenta.
A estudante não desistiu de reverter a decisão. Enquanto aguarda um novo julgamento em instâncias superiores, voltou a estudar para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), como plano B. Ela acredita no sistema de cotas e na importância das bancas de verificação, mas aponta que a estrutura atual é falha e propensa a erros. “São muitos alunos e pouco tempo para avaliar. Só queria que admitissem que erraram comigo.”
Segundo especialistas, situações como essa escancaram os limites do modelo adotado atualmente nas universidades brasileiras. Embora o objetivo seja legítimo – combater fraudes e garantir equidade –, a avaliação meramente visual, feita por pessoas que não conhecem o candidato e muitas vezes por vídeo, pode levar a distorções e injustiças graves. O caso de Samille reacende o debate sobre a urgência de um processo mais sensível, transparente e justo.
A última lembrança que Samille guarda da avó, internada dias antes de falecer, foi um orgulho silencioso: “Essa aqui é minha neta, ela também é médica.” A frase ecoa, agora, como combustível. Porque, para Samille, não se trata apenas de uma matrícula ou de uma vaga perdida – mas de um propósito que o Estado e a universidade insistem em negar.
Fonte: g1
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