Jornalismo e a Busca pela Verdade, Pena, Moral e o Poder Transformador do Perdão

O papel do jornalismo na busca pela verdade factual, a importância da pena e da moral, o poder do perdão e a uma lenda no futebol Cuca.

Artigo
Publicado por Bianca Ludymila em 25/05/2023
Jornalismo e a Busca pela Verdade, Pena, Moral e o Poder Transformador do Perdão

No livro provocador “Existe Democracia sem Verdade Factual?”, o renomado jornalista e professor Eugênio Bucci expõe a importância da busca pela verdade no trabalho árduo dos jornalistas. Ele destaca a necessidade da verdade factual, uma forma frágil e efêmera de verdade, distinta das grandes verdades filosóficas e metafísicas que se pretendem transcendentes e monumentais.

Essa busca diária pela verdade pelos jornalistas envolve registrar os fatos, mesmo que de forma precária, a fim de compreender o que ocorre no mundo. Esses fatos são objetivos e passíveis de verificação, ancorando-nos na realidade compartilhada e conectando-nos à coletividade. Eles servem como base para decisões racionais na política e no sistema de justiça. Desconsiderar os fatos implica viver em fuga, como covardes que evitam enfrentar os desafios cotidianos.

No contexto das redes sociais atuais, a verdade factual e a objetividade jornalística frequentemente são ameaçadas por opiniões e disputas de narrativas interessadas. No entanto, nas últimas semanas, essa tendência se inverteu, revelando verdades objetivas fortes o suficiente para desmascarar décadas de equívocos e omissões relacionadas a um dos principais problemas sociais do Brasil: a violência contra a mulher.

A história intrigante e cruel envolvendo o técnico Cuca e outros três jogadores do Grêmio continha fatos verificáveis e objetivos que haviam sido negligenciados. Em 1987, esses jogadores foram acusados de abusar de uma menina de 13 anos em Berna, na Suíça. Segundo as investigações, ela foi ao quarto deles com amigos para pedir uma camisa do Grêmio. Os amigos foram expulsos e a menina foi abusada, conforme relatou posteriormente a um jornal suíço. Três jogadores a seguraram enquanto o quarto a estuprou. Um segundo estupro ocorreu, de acordo com o relato da vítima ao jornal.

Cuca é julgado

Durante o julgamento, dois anos depois do início do processo, ficou comprovado materialmente que Cuca era um dos abusadores.

O jornal suíço que cobria o julgamento publicou que “o relatório forense mostrou vestígios dos jogadores Alexi e Eduardo no corpo da menina”. Alexi é o nome de Cuca. O exame foi realizado pelo Instituto de Medicina Legal da Universidade de Berna, como relatado posteriormente pelo advogado da vítima.

Apesar das conquistas de Cuca no futebol e de seus esforços para esquecer e silenciar seu passado, as verdades factuais começaram a emergir. Após a repercussão de sua contratação pelo Corinthians, Cuca negou sua participação no crime, alegando falta de lembrança sobre os detalhes. Tratou o assunto com banalidade, como se fosse algo esquecível. Ele afirmou que não foi reconhecido pela vítima, mas foi desmentido por seu advogado. Também alegou ter sido julgado à revelia, o que era mentira, uma vez que o Grêmio enviou um advogado para defendêndo-os.

As verdades factuais, no entanto, foram resgatadas por jornalistas dedicados, como Juca Kfouri e Adriano Wilkson, desmontando a defesa insustentável de Cuca. Diante dos fatos objetivos que vieram à tona, ele decidiu pedir para sair do clube, ameaçando processar jornalistas que distorcessem os acontecimentos, ignorando sua própria responsabilidade nas distorções.

Embora a história tenha sido marcada por drama, ela rompeu as barreiras do ambiente masculino e fechado do futebol. Vozes femininas indignadas se fizeram ouvir nos programas esportivos, juntamente com as jogadoras e torcedoras do Corinthians, que protestaram contra a contratação de Cuca. Mais de 30 anos de omissões começaram a ser expostos, em um país com altas taxas de violência contra a mulher. A partir desse momento, não houve retorno.

A revelação dessas verdades objetivas resultou em uma reflexão necessária sobre a cultura violenta que permeia o futebol e a sociedade brasileira. A força do discurso das mulheres na sociedade e sua participação cada vez mais ativa nos debates abriram espaço para uma profunda reflexão sobre transformações urgentes.

Erros no jornalismo e fake news

Foram discutidos os erros e negligências da imprensa, destacando cenas inaceitáveis nos dias atuais, como a festa feita pelos torcedores do Grêmio ao receberem os jogadores após 28 dias de detenção nos anos 1980. A complacência preguiçosa da imprensa esportiva ao aceitar a versão dos acusados sem verificar a verdade foi apontada. Apesar do sigilo de 150 anos em torno do processo dificultar a investigação, os fatos finalmente emergiram. Entrevistas antigas com os acusados foram resgatadas, revelando a falta de cuidado em relação ao que fizeram e ao sofrimento da vítima, que, mais tarde, tentou suicídio, segundo seu advogado suíço.

Flávia Oliveira, jornalista, apresentou dados sobre a gravidade do silenciamento em relação à violência contra a mulher no Brasil. Casos anteriores, como os envolvendo os jogadores Robinho e Daniel Alves, foram resgatados para mostrar que a condescendência permite que comportamentos abusivos se repitam.

Essas múltiplas verdades objetivas, somadas e interligadas, começaram a revelar uma parte da história do machismo no futebol e na sociedade brasileira, não mais tolerada diante do fortalecimento da voz das mulheres e de sua participação ativa em debates anteriormente dominados pelos homens. A partir do silêncio e da omissão, surgiu uma reflexão necessária sobre nossa cultura violenta e suas recentes transformações.

Entre os torcedores do Corinthians e até mesmo entre os jogadores, houve aqueles que argumentaram contra uma punição eterna, que impediria o treinador de trabalhar para sempre. Alguns lamentaram o envolvimento do time em questões políticas que vão além dos resultados dos jogos de futebol. Embora do ponto de vista penal não houvesse mais ações a serem tomadas, pois os jogadores acusados já haviam sido condenados na Suíça e a pena havia expirado, permanece uma questão moral em aberto.

Assumir a verdade objetiva dos fatos, demonstrar arrependimento e pedir desculpas são condições necessárias para buscar o perdão. A verdade tem o poder de restaurar, uma vez que sua revelação desperta o arrependimento e o pedido de desculpas. Esse princípio tem orientado comissões restauradoras em eventos históricos traumáticos, como ocorreu no pós-Apartheid na África do Sul, e busca-se fazer algo semelhante no Brasil, embora até o momento sem sucesso. O fracasso da Comissão da Verdade brasileira deve-se, em grande parte, à recusa das Forças Armadas, principais envolvidas nos crimes da Ditadura, em admitir seus erros.

Cuca e os jogadores do Grêmio também se recusaram a assumir a verdade

O treinador, em particular, afirmou veementemente que não tinha motivos para pedir desculpas, pois se considerava inocente. No entanto, diante dos fatos objetivos que vieram à tona, sua defesa tornou-se difícil de acreditar.

Cuca se autodenomina devoto de Nossa Senhora Aparecida e leva sua religião a sério. Na obra “O Auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna, e no filme baseado no livro, o perdão de Nossa Senhora e sua compaixão pelos pecadores exigem, acima de tudo, um arrependimento sincero diante dos erros, o que implica em admitir as verdades factuais do que ocorreu em todas as suas dimensões.

A mentira preserva o orgulho e a arrogância

Nem Cuca nem os demais envolvidos no caso assumiram a responsabilidade ou pediram perdão pelo que aconteceu. Pelo contrário, durante décadas, suas narrativas confundiram a opinião pública. Sem a verdade, não pode haver arrependimento nem perdão. Sem a verdade, não podemos corrigir os erros. Sem a verdade, acreditamos em mentirosos e não enxergamos as injustiças. A verdade factual nos mantém conectados a um mundo comum e, portanto, sem ela, a democracia corre riscos. Sem a verdade factual, ficamos sujeitos a perder nossa referência e sucumbir ao caos.

O caso envolvendo Cuca e os jogadores do Grêmio serve como um lembrete de que a busca pela verdade factual é essencial para o jornalismo e para a sociedade como um todo. Os jornalistas desempenham um papel crucial ao investigar e relatar os fatos objetivos, ancorando-nos na realidade e nos ajudando a tomar decisões racionais. O desafio atual reside em resistir às narrativas distorcidas e às opiniões tendenciosas que permeiam as redes sociais, a fim de preservar a integridade da verdade factual.

Nesse sentido, cabe a todos nós valorizar e exigir a verdade em nossas vidas cotidianas. Devemos buscar informações precisas e verificadas, questionar discursos enganosos e estar dispostos a confrontar os desafios da desinformação. Ao promovermos uma cultura de transparência, responsabilidade e busca pela verdade factual, fortalecemos os alicerces da democracia e garantimos que os erros do passado sejam reconhecidos, corrigidos e não se repitam no futuro. Somente com uma imprensa comprometida com a veracidade dos fatos e uma sociedade engajada na busca pela verdade, poderemos construir um mundo mais justo, informado e fundamentado em princípios sólidos.

*Com base no artigo de Alexandre Macchione Saes, professor da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da USP, Jornal da Usp.

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