Reflexão sobre o poder do conceito de gênero: indo além das diferenças físicas

A importância do termo “gênero” nas ciências humanas é tema de reflexão profunda.

Ao invés de focar na dicotomia entre sexo biológico e nas diferenças entre homens e mulheres, a utilização do termo “gênero” surge da compreensão de que são as relações sociais que geram desigualdades, e não a natureza ou o corpo em si. Ser mulher, por exemplo, não é determinado pelos órgãos reprodutivos ou pelos genes, mas sim pela forma como cada sociedade e época delimita o espaço apropriado para as mulheres. O conceito de gênero vai além das diferenças sexuais e abrange a construção histórica e cultural do que é considerado feminino ou masculino em cada contexto social.

A origem do termo “gênero” remonta às pesquisas médicas sobre identidade de gênero realizadas nos Estados Unidos, a partir do século passado. Inicialmente, essas pesquisas focavam em intervenções cirúrgicas e hormonais para adequar a identidade de gênero de pessoas intersexuais, buscando alinhar seu corpo, especialmente a genitália, à sua identidade de gênero. Posteriormente, esses tratamentos passaram a ser oferecidos a pessoas que não se sentiam confortáveis com o sexo atribuído no nascimento, visando a harmonização entre corpo e identidade de gênero.

No âmbito das ciências humanas, o termo “gênero” se consolidou nas décadas de 1980 e 1990, em diálogo com as teorias feministas que discutiam o processo de tornar-se mulher e abordavam a assimetria e a desigualdade social entre homens e mulheres. A frase marcante do livro de Simone de Beauvoir, “O Segundo Sexo”, publicado em 1949, “não se nasce mulher, torna-se mulher”, expressa a ideia de que a condição de ser mulher não é determinada apenas pelo corpo. Pesquisas nas áreas da antropologia e historiografia desde a década de 1970 têm demonstrado como o papel social e a experiência de ser mulher (ou homem, ou de pertencer a um terceiro gênero, presente em alguns grupos sociais) variam significativamente em diferentes contextos.

Nas perspectivas mais contemporâneas, o conceito de gênero nos impulsiona a transcender a oposição binária entre homens e mulheres, considerando que as pessoas são atravessadas por outras diferenças sociais, como classe social, raça, etnia, sexualidade, deficiência ou geração. Esses diversos aspectos influenciam a posição social ocupada por cada indivíduo e moldam suas experiências. Ser uma jovem mulher negra e lésbica, por exemplo, é muito diferente das possibilidades e situações vivenciadas por uma professora universitária branca de meia-idade. Portanto, na análise da vida social, é fundamental compreender que as desigualdades e discriminações estão relacionadas não apenas ao gênero, mas também à classe social, raça, etnia, orientação sexual, deficiência e outros marcadores sociais.

Nessa concepção, não existe uma noção genérica de “a mulher”, pois o que encontramos são mulheres diversas, vivendo em contextos distintos, com características e experiências variadas. Sejam elas brancas, negras, indígenas, cisgênero ou transgênero, heterossexuais, bissexuais ou homossexuais, crianças, jovens ou idosas, com ou sem deficiência, pertencentes a diferentes classes sociais, mães ou não, vivendo em áreas urbanas, rurais, aldeias ou vilas, cada situação apresenta uma multiplicidade de circunstâncias. A teoria de gênero busca considerar as interseções entre esses diversos marcadores sociais da diferença. “Gênero, raça e classe” são as categorias iniciais de uma abordagem científica que busca compreender a articulação entre esses eixos de diferença social.

Além de enfatizar que as diferenças não são naturais e que estamos sujeitos a outras diferenças sociais, o conceito de gênero também remete à forma como diferentes sociedades e épocas atribuem significados ao que é considerado feminino ou masculino, classificações que vão além dos corpos. Por exemplo, determinadas atividades podem ser vistas como masculinas ou femininas, como a feminização da enfermagem ou da educação infantil (e do cuidado), e a masculinização de posições de poder e de atividades relacionadas à força e até mesmo à violência. Nessa perspectiva, é um viés de gênero imaginar que meninos não choram, mas podem ser agressivos.

O estudo de gênero não se restringe apenas a compreender as situações vivenciadas pelas mulheres, mas busca entender por que e como são produzidas masculinidades violentas, relações desiguais, discriminação e preconceito contra mulheres e pessoas LGBTQIA+. Reconhecer que as diferenças não são fisiológicas possibilita uma melhor compreensão das relações sociais, abrindo espaço para questionar as desigualdades (que são sociais e não fixadas no corpo) e as discriminações, promovendo um maior respeito pela diversidade.

Texto com base no artigo de Heloísa Buarque de Almeida, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, publicado no Jornal da Usp.