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Escritor Caieirense participa de lançamento de mais uma coletânea e orgulha cidade

Matheus Siqueira e membros da Academia de Letras da Universidade Mackenzie lançaram mais uma coletânea.
Publicado em Notícias dia 22/12/2022 por Alan Corrêa

No dia 17 de dezembro de 2022, o Escritor Matheus Siqueira juntamente com os membros da Academia de Letras da Universidade Mackenzie (ALEMACK) lançaram mais uma coletânea.

A obra refere-se à comemoração aos 100 anos da Semana de Arte Moderna e Matheus contribuiu com o texto.

O escritor, membro da Academia desde 2020, ocupa a cadeira do escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe. Matheus também participou do volume 1 “Contos Urbanos” lançado em 2021 durante a pandemia.

O viajante do tempo e a semana da arte moderna

Sinto-me cansado, exausto a ponto de sofrer para abrir os olhos. Certamente meu enjoo é reflexo da viagem que acredito ter feito, lembro-me apenas de ter me debruçado sobre o livro e acordado aqui.

– Onde estou?

Num movimento involuntário, coloco-me em pé e olho para os lados naquele quarto estranho, iluminado apenas pelas frestas de uma bela janela de madeira e uma lamparina…

É hoje, não posso perder a hora. Mas que horas são? Procuro pelo meu celular, mas não o encontro. Abro o guarda-roupa e pego o primeiro paletó que vejo, a camisa branca um tanto amarrotada, a gravata preta dentro de uma gaveta esfiapada… o quarto está cheirando a tabaco e bebida, um cheiro bem incomum para meu costume. Pergunto-me: devo correr, gritar ou pedir ajuda? Respondo-me de imediato: devo ir para onde eu deveria ir, meu destino, o Teatro Municipal de São Paulo, pelo menos a última coisa que eu havia pensado antes de acordar aqui no bairro da República. Mas a garoa não cessa. E os automóveis? O que traria tantos automóveis para aquele lugar? São todos tão antigos, o cheiro de gasolina é muito forte. Café, fumaça e gasolina são os cheiros que rodeiam aqui fora, impregnam na roupa e cabelos. Mesmo assim, o ar está mais limpo do que nunca, está tão leve e a brisa misturada com a garoa beija-me o rosto.

Um homem ao meu lado passa e, com sua elegância expressiva, bigode ondulado e estilo moderno, me responde à pergunta que grita dentro de mim: é real! Eu sou viajante do tempo e estou presente na Semana de Arte Moderna. Mas o que eu faço cem anos atrás? Eu consegui, eu voltei no tempo por causa daquele livro, direto de 2022 para 1922, nem meus avós eram nascidos aqui! Não tenho nem a quem visitar, ou será que tenho? Estou sozinho, perdido nos anos, será que conseguirei voltar? E se eu não voltar? Respiro fundo e me acalmo… se teve passagem para ida, com certeza haverá para volta.

Eu, sendo viajante temporal e sensato, sigo tudo com muita calma e incorporo o personagem moderno. Uma parte de mim me faz querer voltar, outra parte aqui me prende e me faz maravilhar nesta época de classe, de glamour, de consistência. Retribuo cada bom dia que me dão com um aceno educado.

Sento-me em um grande banco de madeira na Praça Ramos de Azevedo, ou Esplanada do Teatro aqui, como mostra a grande placa acima de minha cabeça. Estou embaixo de uma coberta de barro esperando a garoa passar. Apanho o jornal ao lado, deixado por um estranho, e finjo-me de comum com as pernas juntas e mãos esticadas com aquele papel sujando meus dedos. Leio toda a programação de segunda, quarta e sexta naquela folha cinzenta… é hoje! Hoje é segunda! Já posso até escutar o som do coral de Villa Lobos cantar como um louvor divino em meus ouvidos, chamando-me para lá. A arte me chama! Eu vou!

Paro de novo e olho ao meu redor o lugar que um dia se tornaria o bairro da República, tudo tão diferente, tão leve, tão europeu. Enganaria-me facilmente quem dissesse que estou em um verão inglês.

Indo ao teatro, quase sou atravessado por um cavalo apressado. Chego ao teatro, enfio-me naquela fila de pessoas bem arrumadas, com cigarro nas mãos e anéis nos dedos. Baixo a cabeça e entrei discreto no meio de tantos casos suntuosos.

Caminho por todos os cantos do Teatro Municipal de São Paulo, me encantando com a entrada de homens e mulheres elegantemente vestidos, curiosos com o que encontrariam, afinal a semana seria de surpreender com suas atrações e polêmicas. Desfruto da energia do novo, do diferente, do inexplicável que paira no ar; observo o vislumbre dentro de todos aqueles olhos e suspiro aliviado e maravilhado por ser o único da minha geração que conseguiu voltar para vê-los; sinto os diferentes cheiros, a luminosidade e os ruídos que por lá circulam… coço a mão até para fazer um “story”. Que falta faz meu celular… estou eu dentro de um dos maiores marcos da cultura brasileira e nem consigo registrar. Será que acreditarão em mim? Sinto lágrimas rolarem, coração disparado, mas não é a ansiedade nem ataques de pânico que atingem as pessoas pós pandemia… Por um momento, ponho a mão no rosto e lembro-me da máscara que fez parte da minha vida nos últimos dois anos… mas estou bem antes de tudo isso, um século antes. Essas pessoas nem imaginam um décimo das coisas que passam pela minha cabeça. O que eu faço com todo esse entusiasmo?

Tudo lá dentro era luxo!

Luxo, luxo e mais luxo! Perco-me no peso deste lugar que necessitaria de horas de conversa para ser descrito, sinto-me poderoso e privilegiado apenas de colocar meus pés aqui. Uma mistura de ares franceses e ingleses em terras brasileiras, tão poderosos quanto as vanguardas que me cercavam. Deparo-me com Oswald e Mario de Andrade, que, por um mero desentendimento, não são parentes. Não têm sequer semelhança! Cumprimento os dois como se fosse um estranho. Faço um comentário grotesco para a época e ambos reagem sem entender nada. Sorrio, mas acho melhor me controlar… o intuito de voltar no tempo seria causar poucas impressões para não alterar a história.

Volto a caminhar pelo teatro, andando com elegância enquanto “a Segunda Sonata” de Villa Lobos percorre o foyer. Cantarolo, já conhecendo a melodia, e surpreendo uns dois ou três do meu lado.

Paro diante de Anita Malfatti e observo bem atentamente suas doze pinturas a óleo expostas. São as mesmas que eu havia visto nos livros, exatamente as mesmas, mas aqui elas estão tão de perto… Sinto um calafrio pelo corpo. Anita vem em minha direção e eu fico imóvel, travo diante de tudo e fico no impasse entre conversar ou dar as costas discretamente para passar despercebido.

Ela chega bem perto e começa a conversar comigo, eu cedo, ela me fala sobre o “Jardim” e rimos, rimos de trocadilhos com relação aos demais espectadores, converso como se fosse uma amiga minha e entro na personagem da década de vinte. Eu aceno depois da conversa e volto a andar por lá, não quero causar confusão… tenho medo dos efeitos que isso poderia trazer, tenho medo do que me viria.

Estico um pouco mais e dou de cara com Di Cavalcanti, o qual me olha seriamente e me apresenta o “Nouveau”. Trocamos poucas palavras e eu coço para não falar mais do que devia, policio-me ao máximo com gírias e expressões atuais. Se eles soubessem o tanto que eu sei… que vontade de conversar à vontade com todos eles sem me rebuscar tanto. Me veriam como louco? Talvez, então me seguro para não dizer nada.

Escuto vaias! Escuto pessoas insultando obras de Anita, são sons que incomodam, porém chamam mais a atenção dos demais espectadores. Será que é proposital? Isso me traz a reflexão de que a Semana de Arte Moderna é como o próprio nome já diz: uma semana de arte moderna e tudo que vem como moderno não é bem aceito de início, recebe uma chuva de críticas até ser digerido pela avaliação do tempo. Esses “haters” que aqui criticaram o evento dos pés à cabeça, que insultam os artistas e os difamam como se estivessem cometendo um crime à cultura brasileira. Essas coisas nos soam familiar? Imagine uma semana de arte moderna hoje. Quem iria? Quem falaria bem e quem falaria mal? Imagino parentes meus dizendo que Tarsila precisaria fazer, no mínimo, um curso de desenho para estar onde está. Morderiam a língua! Queimariam! Provavelmente eu veria mais hashtags do que vaias, mas está valendo…

Olho para isso e não paro de pensar em todo esse contexto. Isso tudo nos faz entender a importância de movimentos rebeldes dentro da sociedade e o poder que eles têm. A arte importa! A arte é poderosa! A arte transforma e incomoda! A arte está dentro de todos e não podemos viver sem, a vida sem arte é como enxergar uma televisão sem movimento e cores, ir a um show musical sem música e ler um livro em branco.

Temos que ter em mente que há coisas que nos surpreendem e outras que nos decepcionam, talvez não seja um momento como eu sempre imaginei ou talvez tenha ocorrido muito mais do que os livros contam, tudo tende a ficar mais singelo de perto, mas é verdadeiro, é plausível, é mensurável. Reflito muito nos dias de hoje, quando não damos a devida importância para artistas ousados, para aqueles que julgamos simples e sem talento ou simplesmente dizemos com o peito inflado “isto não é arte” ou “não sei como dão tanta importância para algo tão feio”. O mundo carrega uma surpresa atrás da outra, afinal, o que pode ser imperceptível hoje pode ser um grande marco no futuro, algo que nos fará pensar: “como eu nunca percebi isso? Não acredito que foi tão importante assim”.

Faço questão de continuar caminhando por tudo e interagir com cada um desses jovens artistas que contribuirão belamente com a história de nossa cultura. Encho minha vida de alegria e sinto cada detalhe em minha alma. Mergulho tão bem nesse mundo que me esqueci até que sou de outro tempo, de outro mundo. Acho que sexta-feira eu volto para casa…